terça-feira, 14 de setembro de 2010

Diálogo 1

Profeta - Deita-me aí um whisky...
Anti-Profeta - Parece-me que há um desnorte geral.
P. - Quê?
A-P. - Desnorte!
P. - De quê?
A-P. - Por parte das pessoas.
P. - Que tem isso a ver com o Red Label?
A-P. - Apenas a desfiar conversa...
P. - E porquê?
A.-P. - Porquê o quê?
P. - Porque achas que há desnorte?
A.-P. Porque as latitudes e as latitudes já não respondem às bússolas.
P. - Não percebi.
A.-P. - Deixa lá.
p. - Hmm.
A.-P. - O que será que substitui os valores, hábitos e convenções que sofrem hoje erosão?
P. - Os valores não sofrem erosão nenhuma.
A.-P. - Não?
P. - Isso é conversa fiada...
A.-P. - Eu disse que estava a desfiar conversa...
P. - Tretas.
A.-P. - Acho que tens razão. Morreram costumes, isso sim - um corpo normativo, consentido e defendido, de direito consuetudinário.
P. - Isso mais depressa.
A.-P. - E as pessoas, sem rede por debaixo da corda bamba, têm de refugiar-se noutras normas, noutros códigos. Coisas dos tempos nossos, velozes e transitórios.
P. - Nunca te disseram que usas demasiado as palavras norma e normativos, etc. e tal?
A.-P. - É capaz.
P. - E porque achas isso importante?
A.-P. - Porque, sem práticas forjadas na têmpera dos tempos, hoje anseia-se por regulamentar tudo e proibir muita coisa.
P. - Passa-me daí uma linguiça para pôr aqui na grelha.
A.-P. - Não concordas?
P. - Hmm... Ainda há coisas do passado que guiam a gente.
A.-P. - Mas é tudo remetido para um baú de velharias.
P. - Referes-te a quê, concretamente?
A.-P. - Arranjas-me um cigarro?
P. - Outra vez?
A.-P. - Refiro-me à mentalidade higienista e dietética, ao ambientalismo militante e autista, ao pacifismo de sofá, à repressão do vício e da liberdade de, se quisermos, sermos decadentes.
P. - É capaz de ser, é.
A.-P. - Olha, a penalização das drogas, por exemplo.
P. - Sim.
A.-P. - Muita gente não imagina que, em termos históricos...
P. - Vamos falar de história outra vez?
A.-P. - Não.
P. - Ok.
A.-P. - A penalização é coisa recente. O poeta consumia ópio para aguentar a vida.
P. - Quem?
A.-P. - "Olá, guardador de rebanhos, / Aí à beira da estrada".
P. - Rebanhos?
A.-P. - Fernando Pessoa!*
P. - Outro louco.
A.-P. - Outros loucos, queres tu dizer.
P. - Liberdade a mais mata.
A.-P. - É possível, mas isso não é razão suficiente para coarctá-la.
P. - P'ra quê?
A.-P. - Esquece.

* Isto é, Alberto Caeiro.

FS

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