terça-feira, 29 de março de 2011

A menina e as árvores

Desliza descalça, a menina princesa na noite escura. Elege o tacto como sentido norteador predilecto, navegando os corredores, as escadarias e o mármore morto. Mal os seus pés tocam a frescura do chão, a sua alma desce para ficar mais perto da frequência da força telúrica, sabendo que as plantas dos seus pés são receptores da amenidade do silêncio da casa que dorme.
A menina sente este colosso no seu sono nocturno, inspirando e exalando uma amálgama de tijolos, cadeiras, almofadas, colheres, pessoas - todos juntos a dormir em uníssono enquanto a menina deriva pelos seus cantos e pelas suaves curvas da casa. Ela sabe que é a única menina acordada nesse preciso momento enquanto o universo sonha diferentes paralelos. Espectadora do mundo, facto que a afaga, actuando como Chopin para a sua alma.
Afasta dois dedos da cortina e sente o vento que num eterno vai-vem acaricia as árvores e o sopé da janela. E numa dessas brisas, as árvores sussurraram-lhe um segredo: tal como a alma da menina residia na planta dos seus pés, também o ser das árvores está depositado nas raízes das árvores.
De facto a menina já tinha constatado que algo de estranho se passava com as árvores da sua terra, mas só no mundo da noite percebeu o motivo.
A terra cuspia-as recusando envolver as suas raízes no seu aconchego do solo. Caiam desalmadas, abandonadas, rejeitadas no seu ser. Outras como as palmeiras, eram decapitadas porque albergavam no seu seio um bichinho que as tornava ocas. Perdiam raízes e perdiam os seus sonhos. O elo entre os seres estava em ruptura: ninguém queria continuar a acolher o outro.
Reconfortada por não ser árvore neste mundo, a menina plantou os pés no frio da casa escura, feliz por sentir, feliz por saber que ela estava a salvo destes fenómenos pois todas as noites treinava o seu tacto e cultivava a sua alma nos pés. Suspirou, fechou os olhos e uniu-se à casa entorpecida, à miscelânea de almas. Ao menos por algumas horas, pensou a menina.

RB