Há alguns dias, cruzei-me com uma caracterização inverosímil do fascismo português. Alguém rotulava de “light” o Estado Novo, regime assente numa das ramificações do totalitarismo genealógico do século XX. A avaliação decorria de uma análise quantitativa das perdas humanas originadas pela acção repressiva do Estado Novo, em comparação com os fascismos alheios, de matizes espanhol e italiano, e com o “mal absoluto” nazi. Apesar de, no plano quantitativo, se exibir Hitler como o grande carniceiro da “direita totalitária”, Estaline tem razão quando definiu uma morte como uma “tragédia”. Mas quando infligida pelas mordaças asfixiantes de um Estado, a tragédia reveste-se de torpeza irremissível, pelo que a aparente filantropia de Estaline sucumbe à sua eterna condição de assassino ávido. A banalização do mal converte, efectivamente, a “tragédia” em estatística, solidificando os alvores do século XXI esta relação. No Congo ou no Darfur, no Ruanda ou na Libéria, a adição de 10 mil mortes a uma contabilidade macabra não provoca um inelutável acréscimo de dor no observador longínquo. O Homem urbano do século XXI acomodou-se aos relatos de chacinas, difundidos pelos jornais nos interstícios das páginas “internacionais”.
Só uma degeneração da essência humana permite que a asserção de Estaline exiba pertinência. Todavia, no intuito de aplacar a gangrena, torna-se imperioso repudiar qualquer Estado responsável por mortes, derivadas de actividades persecutórias ilegítimas. Não há, por isso, “fascismos light”, mesmo que o Estado Novo estivesse vinculado, “somente”, a uma morte.
A recente notoriedade que a extrema-direita, em Portugal, conquistou coage o Homem com memória a recordar os seus antecessores ideológicos. Entre os totalitarismos de direita, o nazismo foi o seu derivado mais fugaz e letal, definido como o “mal absoluto” pelas precursoras abordagens da vida e da morte. Apesar de o comunismo soviético ter aniquilado mais vidas – em mais de 70 anos de vida –, a industrialização da morte confere ao nazismo uma particularidade que o comunismo nunca tentou decalcar. Na União Soviética, durante os ominosos anos da Grande Fome, milhões sucumbiram à inanição, desenlace cujas responsabilidades devem ser atribuídas a um conluio entre a malignidade humana e a voracidade do tempo. Na Alemanha nazi, pelo contrário, a actividade humana foi a única responsável pelo extermínio. Tzvetan Todorov, em Memória do Mal, Tentação do Bem, escreve: “Se é certo que as classes inimigas devem ser eliminadas, essa tarefa caberá essencialmente à história e à natureza (a tundra gelada da Sibéria). Os nazis põem em prática o mesmo desprezo pela vida nos campos de concentração ou na exploração dos trabalhos forçados; porém, nos campos de extermínio, a morte transforma-se num fim em si mesmo. Nesta perspectiva, cada um dos dois regimes conserva a sua especificidade, apesar da semelhança dos seus programas”.
(continua)
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