domingo, 31 de outubro de 2010

Ele e Ela perdidos algures num Nós

A maneira metódica, quase robótica como ela preparava os legumes para o jantar enervava-o profundamente. Ficava sentado na mesa da cozinha enquanto ela cortava primeiro vertical e depois horizontalmente a cebola para depois ter cubinhos perfeitos. Seguia-se o pimento vermelho: descascado com precisão porque ela sempre dizia que a casca dificultava a digestão. Ela até conseguia impor ordem nas entranhas dele. O molho de bolonhesa não era mau, até bem condimentado num apartamento cujas paredes entretanto só conheciam as emoções de sal e pimenta. Ele sentia-se como espectador romano ao observar a maneira como as suas frustrações se digladiavam entre os coadores, a faca de serrote e a tábua de plástico.

Ao longo dos anos de matrimónio morno, o que tinha acontecido à espontaneidade daquela rapariga que lhe tinha causado tanto reboliço emocional e hormonal? Essa, pediu asilo político para fugir da nação repressora do casamento, deambulando num monte de burocracia, num serviço de estrangeiros e fronteiras qualquer.
O cabelo dela sempre fora um mensageiro silencioso da sua alma e a indolência e palidez actual que se estendiam pelos fios só davam continuidade à pequenez da sua chama feminina interior. São cabelos de velha, pensava ele.

Entretanto ela pressionava o canto do olho com a base da mão, realizando com ironia que só cebolas conseguiam soltar algum sentimento natural nela. Ela lembrava-se bem e com algum resquício de saudade, dos tempos em que ele bastava apanhar o faro dela no ar para persegui-la nos seus passos. Parecia que os tempos em que não estavam entrelaçados eram pausas suspensas de respiração, onde só um beijo lhes dava fôlego primordial. Ele aninhava-a nos seus braços, correndo tacteante o longo percurso desde a cova do joelho até à seda brilhante, junto ao mesmo balcão de cozinha onde hoje ela perdeu toda a atracção, como se tivessem sido desmagnetizados pelos deuses.

Nem ele nem ela conseguem apontar claramente o início do declínio da curva de Bell da sua paixão; foi um processo gradual e silencioso que os contagiou durante o sono profundo. Talvez fosse pela ausência da desejada criança, sem o balde de argamassa para o nós. Talvez pelo efeito cronométrico nos corpos e nos espíritos. Mas enquanto ela preparava o jantar e ele a observava ficou claro: de paixão tinham passado para um entendimento, um pacto de convivência pacífica, sem intermédios. Sem zangas até, como se o amor nunca lá tivesse residido entre eles. Porque o único habitante de um nós é o amor entre ele e ela. Perceberam afinal que a paixão é um dom de tempo limitado que depois de expirar tem que ser emprestado a outros eles, a outras elas, a outros nós.

RB

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