domingo, 19 de dezembro de 2010

Um Conto de Natal

É uma tradição alemã partilhar contos de Natal nesta época do Advento, e por isso decidi traduzir do alemão um belíssimo conto de Bertolt Brecht para que o aconchego intimista que tanto prezo no Natal também passe pelo nosso blog e pelos nossos pandorianos. Aproveito assim para vos desejar a todos um Santo Natal!
(RB)


"O embrulho do amor de Deus", Bertolt Brecht

Puxem umas cadeiras e tragam os vossos chás quentes para aqui, por detrás do fogão e não se esqueçam do rum. É bom estar quente quando se conta histórias do frio.

Algumas pessoas, especialmente aqueles homens que têm alguma coisa contra o sentimentalismo, têm uma forte aversão ao Natal. Mas houve pelo menos um Natal na minha vida que realmente ficou vivo na minha memória. Era véspera de Natal de 1908 em Chicago. Eu vim para Chicago no início de Novembro, e quando eu perguntei pelas vida nessa cidade, fora-me dito que este seria um inverno tão rigoroso, que tornaria ainda pior as condições de vida nesta tão desagradável cidade. Quando sondei por um emprego como caldeireiro, foi-me dito, que caldeireiros não tinham nenhuma chance, e quando eu procurei um lugar para dormir minimamente habitável, tudo era muito caro para mim. E muitas pessoas, de várias profissões, vivenciaram o mesmo, nesse difícil inverno de 1908 em Chicago.


Durante todo o mês de Dezembro, o terrível vento soprava do lago Michigan e nessa altura fecharam muitas fábricas, lançando uma avalanche de desempregados para as frias ruas.
Percorríamos todos os bairros, procurando desesperadamente por algum trabalho e ficávamos contentes quando à noite, juntamente com outras pessoas esgotadas, nos congregávamos num pequeno bar no bairro dos matadouros. Lá pelo menos estávamos quentes e podia-se ficar calmamente sentados. E, com sorte com um copo de uísque, que se enchia com calor, ruído e os camaradas, tudo aquilo que restava de esperança. Nesse ano e nessa véspera de natal então, estavamos sentados nesse bar que estava mais cheio que normal, e o whisky mais diluído que o costume e os fregueses ainda mais desesperados. É óbvio que nem o público nem o proprietário animavam para um clima festivo. (...)

Mas por volta das dez horas entraram três rapazes que – sabe-se lá como! - tinham alguns dólares no bolso e que convidavam para uma rodada geral, pois era apenas Natal e o sentimentalismo estava no ar. Cinco minutos depois, o lugar inteiro estava irreconhecível. (...)

Contudo, acho que devido à compulsão de presentear todos, incitou-se alguma irritação. Os doadores deste espírito de Natal não foram vistos de olhos amigáveis. Após o primeiro copo de uísque patrocinado, foi traçado um plano de verdadeira dádiva de presentes de Natal.

Uma vez que não abundavam artigos para usar como presentes, era mais lógico utilizar presentes adequados às pessoas e até com algum significado profundo, em vez de presentes de valor material.

Então, nós demos ao proprietário do bar um balde de neve suja da rua, para que o velho whisky pudesse durar – aguado e diluído – até ao ano novo. Ao empregado oferecemos uma lata velha de conserva, assim tinha pelo menos um recipiente de serviço decente. (...)

Estava entre nós um homem que se destacava entre nós pela negatividade, pois estávamos que tinha um grande ponto fraco. Todas as noites estava lá sentado e as pessoas percebiam e acreditavam com segurança que ele tinha uma forte e intransponível aversão a tudo o que tinha a ver com a polícia. Todo o mundo podia ver que ele não estva metido em bons lençois.

Para este homem, nós pensamos em algo muito especial. Rasgamos três páginas de um velho livro de endereços, onde figuravam os contactos de diversos postos da polícia, embrulhamos cuidadosamente numa folha de jornal e entregamos o pacote ao nosso homem.

Enquanto entregávamos o embrulho pairou um grande silêncio na sala. O homem hesitantemente pegou no presente e olhou para nós de soslaio com um sorriso ligeiramente amarelado. Apercebi-me como ele sentia o embrulho com os dedos, de forma a determinar o conteúdo ainda antes de o abrir. (...)

E então algo muito estranho ocorreu. O homem puxou no barbante que fechava o "presente", quando o seu olhar, aparentemente ausente, caiu sobre a folha do jornal que albergava as páginas do livro de endereços da polícia. De repente o seu olhar já não era ausente. Todo o seu corpo magro contorceu-se com o jornal, ele inclinou seu rosto para o fundo da folha, e leu. Nunca, nem antes nem depois, vi um homem ler assim. Ele simplesmente engolia o que leu. E então ele olhou para cima. E novamente eu nunca, nem antes nem depois, vi um olhar tão brilhante como o olhar deste homem.

"Acabei de ler no jornal", disse ele de pé com uma voz enferrujada dolorosamente quieta, contrastando com o ridículo do rosto radiante, "que todo o meu problema simplesmente fora resolvido há muito tempo. Toda a gente sabe, em Ohio, que eu não tenho nada a ver com o sucedido" E então ele ria-se.

Todos nós ficamos impressionados pela reacção do homem pois esperavamos outra, e quase todos perceberam que o homem tinha estado sob alguma acusação, e agora, tal como aquela folha de jornal o explicou, ele tinha sido absolvido. De repente eclodiram risos pelo bar, e esses risos partiam dos corações das pessoas, o que acabou por conceder um balanço positivo à nossa acção, esquecendo-se toda a amargura inicial, e vivemos um excelente Natal, que durou até de manhã, todos nós satisfeitos.

Nessa satisfação geral, é claro, não importou sequer que aquela folha de jornal libertadora não tivesse sido escolhida por nós, mas sim por Deus.